O português erótico de Hilda Hilst na Flip 2018

Por Verônica Fernandes*

 

Depois de um 2017 em que o Brasil retrocedeu nos debates sobre arte e sexualidade, a escolha de Hilda Hilst como homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2018 vem escancarar de vez questões que o país precisa encarar. Se a originalidade de muitas das obras iniciais de Hilda parece escandalizar por dar voz à mulher que, como ela mesma disse, “ousa pensar em português”, são os seus livros eróticos que vão permitir o eu-feminino falar do sexo e do prazer do gozo, temas ainda hoje negados às mulheres. Se o papel da arte é também perturbar, Hilda procurou criar, indo além disso, um discurso visceral, capaz de inventar e questionar novas formas de comunicar e amar. Se quando pensamos em mulheres escritoras brasileiras, o primeiro e principal nome que nos vem à mente é o de Clarice Lispector, nome canônico nacional mais ligado ao pensamento filosófico do que propriamente à literatura, a merecida Flip de Hilda foi ultrapassada até por Ana Cristina César, a tal poeta marginal, segunda mulher a ser homenageada em 16 anos de Feira Literária.

 

Para os críticos e reacionários que nunca aceitaram Hilda como a/o maior escritor/a brasileira/o a falar sobre sexo e erotismo, a escolha atenta de Josélia Aguiar, saindo do “clube do bolinha” da curadoria da Flip, parece ter noção da importância da obra de Hilda no cenário histórico-cultural brasileiro atual. Depois de canceladas as exposições do Queermuseu e dos protestos ocorridos contra a interação performática entre um homem nu e uma criança no Museu de Arte Moderna de São Paulo, Hilda vem falar de sexo naquilo que de mais incômodo e questionador tal assunto pode criar. Seja pela voz de homens, mulheres e até mesmo crianças. É com “O caderno rosa de Lori Lamby” (1990) que Hilda não poupa textos ditos obscenos e grotescos que perturbam pelas descrições pornográficas dos atos sexuais de uma menina de 8 anos. Nesse sentido, mais do que questionar o direito que só os homens têm de narrar o erótico e o pornô – de Jean Genet a Heny Miller, passando por George Bataille -, Hilda exagera para confrontar a metafísica dos seus temas preferidos: a solidão, o amor, o envelhecimento, a literatura, a morte. Como diria o crítico Alcir Pécora, “não é pornográfica a literatura pornográfica de Hilda Hilst.”

 

Definida no seu próprio site como “feira literária pensada para propagar as vivências e diversidades da cultura brasileira e homenagear os grandes escritores nacionais”, a Flip tem com a obscenidade de Hilda a oportunidade de tirar do limbo da história do evento grandes escritoras brasileiras, como também tem a chance de finalmente destacar a importância da obra de Hilda na história da literatura nacional. Ao abrir espaço entre todos os escritores homens homenageados que a precederam, Hilda é possibilidade de romper com a monopolização e poder de um cânon que é definido e composto quase majoritariamente por homens, o que nos faz ver, pensar e agir a partir de visões patriarcais e quase sempre sexistas. Ao finamente dar voz à Hilda, é possível sujar, questionar as visões normativas que ordenam o nosso imaginário nacional, cultural, literário e de gênero. Hilda vai na contramão da literatura rosa e “de mulherzinha” que o caderno de Lori poderia aparentar. Hilda tem com a Flip a possibilidade de espalhar a sua pornocracia, que só é repugnante porque permite às mulheres o direito de falar e gozar. Precisamos, mais do que nunca, de uma pornografia educativa para os analfabetos literários e sexuais que somos, incapazes de comunicar com a diversidade de escritas e desejos. Que venham os livros para salas, quartos e banheiros. Que venha a Hilda grotesca e obscena, maravilhosa na plenitude da sua metafísica pornô, dando às mulheres a possibilidade de escrever e serem lidas, donas das suas próprias narrativas. Mulheres que, ao contrário do que Hilda ironiza em “Contos d’Escárnio”, estão no mundo para também serem sujeitos. Que venha muita metafísica das grossas: é o ano de Hilda Hilst!

 

* Doutoranda em Estudos Portugueses. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

 

Imagem: Blog da Companhia